Por Mário Goulart
Se o lugar-comum do cotidiano e sua utilização fiel chamam a atenção na obra, no autor o que impressiona é esta coisa rara: residência no Rio Grande do Sul e o sucesso alcançado no país inteiro – em 1938! “Pode-se considerar um verdadeiro milagre o fato dele ter vencido”, disse há muito tempo seu amigo Hamílton Chaves. E é mesmo: nos anos 30 e 40, as comunicações, naturalmente precárias, só tinham o rádio como elemento eficaz de interação nacional. De que jeito, então, divulgar o trabalho realizado na província? Quer dizer, existiam na época os problemas que existem ainda hoje, intactos apesar do tempo: o centro propagador da cultura no país é mais em cima, no território ocupado pelos cosmopolitas Rio de Janeiro e São Paulo.
(Para o Lupi, no entanto, as ondas isoladas do rádio foram suficientes para levá-lo ao Brasil e ao mundo – “Vingança” foi gravada em vários idiomas, inclusive em japonês. E enquanto foram influentes, mantiveram sua obra a todo volume, ao alcance do público ouvinte. Até mesmo um dia, lá pelos anos 50, acoplou-se uma imagem ao som, nascia a televisão e já se ouvia perto o rock and roll…)
Mas o outro lado da questão também merece ser destacado: o do provinciano que, vencendo no grande centro, não abandona mesmo assim a província. É o caso do Lupi e de outras figuras importantes do Rio Grande do Sul, todos os exemplos conhecidos de teimosa permanência em sua terra: Érico Veríssimo, Luís Fernando Veríssimo, Josué Guimarães, Mário Quintana. Este último, aliás, deu uma vez sua opinião conclusiva: “Provinciano é quem sai da província”.
Temos, portanto, que acrescentar, às dificuldades citadas, o provincianismo. Lupicínio, como qualquer outro artista de fora do eixo Rio-São Paulo, sofreu na pele isso, e isso é algo terrível, que não só atrapalha ao máximo o sucesso como também magoa e humilha. Numa entrevista ao jornalista gaúcho Ney Gastal, em abril de 1974, Lupi deixou a coisa bem clara: “Se a minha música não houvesse sido gravada por gente do centro do país, ela continuaria tendo o mesmo valor que eventualmente tenha, mas eu jamais seria convidado para esta entrevista. Infelizmente o meio artístico local, os meios empresariais, os produtores de rádio e TV só respeitam o gaúcho que vai e volta consagrado. É o caso de Elis Regina. Se ficar aqui não será ouvido nem cheirado. Mais uma vez digo: provincianismo!”
O curioso é que o Lupi só foi sentir isso mais tarde, depois que já tinha estabelecido o sucesso nacional. No início, quando seria normal essa batalha, Alcides Gonçalves e em seguida Ciro Monteiro facilitaram tudo. O primeiro porque acreditou, coisa espantosa, na música de um co-provinciano; o segundo porque gravou, com talento, a nunca demais mencionada “Se acaso você chegasse”. Foi tudo tão rápido que o Lupi, acredito, nem chegou a sentir o preconceito da província. Mais tarde, sim, a partir principalmente de meados dos anos 50, o provincianismo se manifestou pra valer.
Lupi ficou esquecido, enquanto tudo que era provinciano prestava atenção no rock, no twist, no chachachá, na bossa nova, no iê-iê-iê e também na nova música gauchesca que aparecia. Até que, no início dos 70, voltou a ser assunto nacional. Lançado adivinhem por quem? Pelo eixo Rio-São Paulo, claro. (O pessoal do centro jamais esqueceu Lupicínio, mesmo nesses tempos conturbados, e lotava as casas em que ele eventualmente se apresentava.)
Fiz esse papo todo e, se não me perdi, chego agora onde eu queria chegar. É que, ficando no Rio Grande do Sul, Lupi provou que amava sua terra. Mas ele fez mais: compôs músicas falando desse amor nativista. Uma, feita quando ainda estava em Santa Maria, aos 17 anos, é o xote “Felicidade”, gravado primeiro pelo quarteto Quintandinha Serenaders em 1947, e depois por Caetano Veloso em 1974, quando fez muito sucesso:
“Felicidade foi-se embora / e a saudade no meu peito ainda mora / e é por isso eu gosto de lá de fora / porque sei que a falsidade não vigora. / Lá onde eu moro tem muita mulher bonita / que usa vestido sem cinta e tem na boca um coração / cá na cidade se vê tanta falsidade / que a mulher faz tatuagem até mesmo na afeição / A minha casa fica lá detrás do mundo / mas eu vou em um segundo quando começo a cantar / o pensamento parece uma coisa à-toa / mas como é que a gente voa quando começa a pensar. / Na minha casa tem um cavalo tordilho / que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem / quando eu agarro seus arreios e lhe encilho / sou pior que limpa-trilho / corro na frente do trem”.
A letra aqui está inteira, como foi composta pelo Lupi. O Quitandinha, e depois Caetano, só gravaram parte dela. A primeira gravação, de conjunto – formado pelos gaúchos Luís Telles, Alberto e Paulo Ruschel e pelo mineiro Francisco Pacheco, tido como um dos melhores de todos os tempos –, representou muito para o movimento regionalista que na época se iniciava no Rio Grande. A música apareceu num filme da Atlântida, cantada pelo grupo dentro de um trem, que seguia do Sul para o Rio de Janeiro. Em Porto Alegre, alguns rapazes, entre eles o escritor Barbosa Lessa, curtiram isso intensamente. Aquilo mexeu com seus corações e incendiou em suas mentes uma ideia já em execução: implantar no Rio Grande uma revolução tradicionalista.
(A revolução aconteceu mesmo. Em 1948 fundaram o Centro de Tradições Gaúchas (CTG), o primeiro de um milhar de CTGs que se reproduziram Brasil afora. Para quem não sabe, um CTG é uma espécie de clube em que se cultuam valores tidos como tradicionais, com destaques pra indumentária: bombacha, botas, chapéu com barbicacho. O movimento é conservador, sem dúvida, e se colaborou enormemente na divulgação e renovação da música regionalista gaúcha, exagerou um bocado ao espalhar, junto com os CTGs, um reacionarismo sem tamanho. A própria música gaúcha, aliás, se vê sufocada hoje, não conseguindo ultrapassar os limites impostos por esse gauchismo.)
Intensificando-se o movimento regionalista, Lupi faz parceria com Piratini pra continuar na roda: “Amargo”, lançada pelo Conjunto Vocal Farroupilha no início dos 50 e recriado com sucesso por outro grupo gaúcho, Os Almôndegas, nos 70:
“Amigo, boleia a perna / puxa o banco e vá sentando / encosta a palha na orelha / e o cigarro vá ajeitando. / Enquanto a chaleira chia / o amargo vou cevando. / Foi bom você ter chegado / eu tinha que lhe falar / um gaúcho apaixonado / precisa desabafar. / Chinoca fugiu de casa / com meu amigo João / bem diz que mulher tem asas / na ponta do coração”.
Em seguida, com Alcides Gonçalves, compôs sua maior declaração de amor à terra, uma valsa, que Luiz Gonzaga gravou lá pela metade dos 50:
“Ver carreteiro na estrada passar / e o gaiteiro sua gaita tocar / ver campos verdes cobertos de azul / isto só vindo ao Rio Grande do Sul. / Ver gauchinha o seu pingo montar / e amar com sinceridade / ao Rio Grande do Sul / é pra mim o jardim da saudade. / Oh que bom seria / se Deus um dia de mim se lembrasse / e lá para o céu / o meu Rio Grande comigo levasse. / Mostraria este meu paraíso / para os anjos verem a verdade / que o Rio Grande do Sul / sempre foi o jardim da saudade”. (Jardim da Saudade)
O gauchismo despontava a toda. Atrás do gaúcho-catarinense Pedro Raimundo seguia uma avalanche popular, paralela à outra, mais contida, que atendia as regras do recém-criado tradicionalismo. Apareciam os programas gauchescos de auditórios (Grande Rodeio Coringa, na rádio Farroupilha), novos compositores e as músicas-símbolos do novo momento: Luiz Menezes (“Piazito carreteiro”), Barbosa Lessa (“Negrinho do Pastoreio”), Glaucus Saraiva (“Cigarro de palha”). Tudo isso até que, no início dos 60, surgisse o maior de todos os fenômenos de massa do período gauchista e de toda a música brasileira: Teixeirinha.
Lupi tinha dado uma enorme contribuição ao movimento. Apesar de mais algumas vezes ter-se aventurado no gênero – sem a mesma expressão –, as três composições citadas já bastam para colocá-lo hoje em qualquer antologia do Sul. Por isso, em 1971, na I Califórnia da Canção Nativa (um festival que a partir daí se realiza todos os anos em Uruguaiana, importante porque ajudou na evolução da música regional), Lupi, que concorria, reivindicou para si a honra de pioneiro do regionalismo. A turma não levou a sério. O pessoal prefere mesmo é tê-lo como um fabuloso colaborador. Luiz Menezes: “Ele era o homem do canto livre da noite, um poeta popular que de repente voltava às raízes”. Teixeirinha: “Ele fez essas músicas só pra mostrar que era bom mesmo”.
Lupi, de qualquer maneira, estava lá. E sentindo-se também um regionalista, no fundo mesmo o que ele curtia era um amor imenso pelo Rio Grande. E, não tão no fundo assim, a mágoa aquela, pelo descaso provinciano, pelo silêncio de aplausos em sua terra – ele que, em 1938, tinha conquistado o Brasil todo sem ter saído de Porto Alegre.
(Sexto capítulo do livro “Lupicínio Rodrigues”, de Mário Goulart. Os demais capítulos estão publicados na seção “Memória Viva”.)